O filme “Hoje Eu Quero Voltar Sozinho” é uma produção brasileira, dirigida e roteirizada por Daniel Ribeiro (2014). Ele foi estreado em 2014 como uma ampliação do curta-metragem de 2010 chamado “Eu não Quero Voltar Sozinho”. Tanto o longa-metragem quanto o curta narram a mesma história com os mesmos personagens, sendo que no caso do filme, há uma ampliação de algumas cenas, dilemas e questões, bem como uma retomada de alguns acontecimentos em uma nova narrativa. O personagem central da trama chama-se Leonardo, trata-se de um adolescente com deficiência visual estudante do Ensino Médio. Ele encontra-se em um processo de compreender seus próprios sentimentos, seus desejos e projetos. Nesse processo, ele acaba tendo de lidar com a descoberta de sua própria sexualidade.
Na escola, Leonardo possui uma amiga chamada Giovanna, com quem ele mantém uma relação próxima. No entanto, Leonardo sofre preconceito de outros estudantes devido à sua deficiência visual, vivenciando bullying de outros colegas de turma. Giovanna, sua amiga, demonstra ter uma certa paixão por Leonardo, embora perceba que ele não corresponde a essa paixão. Na cena inicial do filme, Leonardo e Giovanna aparecem juntos em uma piscina conversando sobre o fato de nunca terem beijado ninguém. Nesse contexto, fica claro o interesse de Giovanna por Leonardo, bem como o fato de que ele a enxerga apenas como uma amiga. Ademais, Leo argumenta que quer que seu primeiro beijo seja especial. Essa questão do beijo será posteriormente retomada em outras cenas com o sentido de algo que envolve uma experiência especial de autodescoberta, amor e paixão.
Outra questão que aparece no filme é a dependência de Leonardo das pessoas ao seu redor, que muitas vezes o tratam de forma superprotetora. Giovanna, por exemplo, sempre o guia até sua casa, mesmo que para isso tenha de andar por mais quarteirões após onde mora. Ela, ainda, abre a porta para ele com a chave, algo que Leo é capaz de realizar sozinho. Isso revela uma forma de cuidado problemática em que uma pessoa faz pelo outro aquilo que ele mesmo poderia fazer por si, o que pode gerar uma certa forma de dominação e dependência. O mesmo acontece em relação à sua família. A mãe de Leonardo vê ele como “diferente” por ter uma deficiência visual, como alguém que precisa estar sendo constantemente vigiado. Nesse sentido, a mãe o proíbe de ficar sozinho em casa ou de sair sozinho. Assim, Leonardo se sente cada vez mais preso, privado da independência e da autonomia.
Desse modo, Leo sente que vive em um mundo hostil, o que o leva a um desejo de abandonar essa realidade, de ir para um lugar onde não seja tratado como um diferente, e por isso se aventura na ideia de fazer um intercâmbio em outro país. No entanto, as coisas começam a mudar quando um novo estudante se muda para a escola em que Leo estuda. Trata-se de Gabriel, um garoto bonito, de cabelo cacheados que desenvolve uma relação próxima com Leonardo. Os dois se aproximam bastante, fazem trabalhos escolares juntos, vão ao cinema juntos, saem escondido um com o outro e tornam-se cada vez mais íntimos um do outro. Além disso, Gabriel passa, como Giovana, a acompanhar Leonardo até sua casa.
No entanto, alguns dilemas surgem dessa nova situação. Primeiramente, há a figura de Karina, uma garota que flerta com todos, com Leonardo, com Gabriel, o que irrita Giovanna. Questões de ciúmes surgem nessas relações, em que Gabriel se torna uma figura disputada pelas meninas. Por outro lado, Giovanna se sente como uma terceira excluída do trio Gabriel-Leonardo-Giovanna. Ela começa a perceber cada vez mais Gabriel como um intruso, como alguém que apareceu para substituir o lugar por ela ocupada na vida de Leonardo. Por outro lado, Gabriel também sente ciúmes no que diz respeito à relação entre Karina e Gabriel, temendo que os dois tenham um caso.
Em uma das cenas do filme, Leonardo vai sozinho para a casa e alunos valentões da escola liderados por um estudante chamado Fábio, praticam bullying contra ele por sua deficiência visual e o derrubam no chão. Nesse caso, temos um exemplo de capacitismo, nome que se dá ao preconceito e discriminação contra pessoas que possuem algum tipo de deficiência. Tal vivência de preconceito, deixa Léo com raiva, diante disso ele chega em casa mais tarde do que costuma chegar, o que gera mais uma cena em que se expressa a superproteção dos pais. Leonardo discute com os pais, com raiva, queixando-se da limitação de sua liberdade. É interessante perceber sua postura ativa em manifestar seu incômodo e se colocar no sentido de exigir ser tratado como alguém que merece ter sua autonomia respeitada.
Algo que chama atenção é quando os estudantes da sala são divididos em duplas do mesmo sexo para fazer um trabalho sobre os gregos. Gabriel e Leonardo se juntam para fazer o trabalho, o que os aproxima cada vez mais. Parece que o tema do trabalho não é por acaso. Como destaca Foucault (1984), entre os gregos antigos, o amor entre rapazes tinha um significado muito especial. O amor entre dois homens na Grécia Antiga se apresentava como tendo uma importância tanto no sentido pedagógico, em que o erotismo poderia marcar as relações mestre-discípulo, mas também era importante para a relação entre os guerreiros. Curiosamente, Gabriel e Leonardo se dedicam a estudar sobre os Espartanos, entre os quais o erotismo entre o mesmo sexo desempenhava papel fundamental para a coesão das tropas.
Outro elemento importante da relação entre Gabriel e Leonardo e que torna visível o contato com a dimensão dos sentimentos eróticos entre os dois, ocorre quando Gabriel esquece seu casaco na casa de Leo. Leonardo em casa toma o casaco, o cheira, abraça-o e se masturba. A masturbação aparece como algo natural, como uma forma de descobrimento dos próprios desejos e de uma compreensão do sentimento. Vale ressaltar que a sexualidade aparece no filme de uma forma bastante sutil. O filme foge de outras produções relacionadas a homossexualidade por não focar tanto no sexo, a sexualidade aparece sempre relacionada a uma autodescoberta e a um contato com os sentimentos romântico. Não há nenhuma cena de sexo explícito no filme e mesmo cenas com algum erotismo como a do beijo, a da masturbação ou de quando Gabriel e Leo tomam banho juntos em um acampamento, são apresentados de forma contextual, sutil e em um clima de inocência.
O filme nos chama para olhar para a homossexualidade não como uma perversão sexual, geralmente retratada relacionada a uma suposta depravação ou promiscuidade. A homoafetividade é apresentada como uma descoberta natural da adolescência, assim como a heterossexualidade. No entanto, devemos colocar que ainda que o filme mostrasse a homossexualidade por meio de cenas de sexo explícito, nada haveria de errado nisso. É preciso que questionemos a própria ideia de “promiscuidade” ou a concepção de que o sexo vivido livremente é sinônimo de depravação. É preciso acautelar-se do discurso de que homossexuais para serem respeitados precisam expressar sua sexualidade apenas nos moldes do amor romântico ou compromissado. A verdade é que esse discurso continua sendo homofóbico, continua dizendo ao homossexual que ele até pode ser gay, mas nem tanto; ou que ele pode viver sua sexualidade, mas desde que tome como padrão o que acontece nas relações monogâmicas compromissadas dos heterossexuais.
De todo modo, o fato de o filme manter a sexualidade ligada ao amor romântico e evitar expressões eróticas socialmente consideradas ligadas à promiscuidade, também desempenha um papel importante de desconstruir estereótipos em torno da comunidade LGBTQIA+. Ajuda a entender que pessoas LGBTQIA+s também podem se apaixonar na adolescência e a partir daí ir descobrindo suas identidades, seus sentimentos e sexualidade, e que isso é um processo natural e normal do desenvolvimento humano. As paixões na adolescência, a masturbação como descoberta do próprio corpo, as ligações afetivas, as identificações com personalidades, entre outras coisas, são processos muito importantes do desenvolvimento humano.
Outra cena interessante que merece menção, diz respeito a uma festa feita na casa de Karina em que todos os alunos da turma são convidados. Nessa situação, é possível perceber a problemática do dilema triangular entre Gabriel, Leonardo e Giovanna, em que essa última se sente no papel de terceira excluída. Esse sentimento de exclusão a deixa com raiva e isolada na festa. Nessa festa, os estudantes se juntam para brincar com o jogo da garrafa, em que a pessoa deve beijar aquela a quem a garrafa apontar depois de parar após ser girada. Nesse jogo, podemos perceber o sexismo e a heteronormatividade naturalizada.
Quanto ao sexismo, uma aluna tida como a “bonita da turma” é vista como a desejada e a garrafa é apontada propositadamente para ela como aquela que vai beijar Leonardo. Mas isso revela também uma heteronormatividade naturalizada. Não é esperado nem pensado a possibilidade de que Leonardo não seja heterossexual, na verdade a sociedade espera que todos sejam heterossexuais. Isso também fica implícito quando a família de Leo fala sobre se ele tem planos em ter um filho. Aqui, o tema do beijo e seu papel na trama retorna. No entanto, a situação mostra que os alunos queriam pegar uma peça em Leonardo, aproveitando-se do fato de ele ter uma deficiência visual para fazê-lo beijar um cachorro, evidenciando mais uma vez o capacitismo.
Essa cena, onde se evidenciam sexismo, capacitismo e heteronormatividade, nos faz lembrar o conceito de interseccionalidade. Opressões podem se sobrepor e serem vividas pela mesma pessoa de forma interseccional (BILGE &COLLINS, 2021). Em outras cenas dos filmes, Leonardo e Gabriel são “zoados” pelos colegas como um casal gay, embora fique menos explícito o caráter discriminatório dessas expressões. De todo modo, uma pessoa com deficiência visual e com uma orientação sexual fora dos padrões da heteronormatividade, vivenciará na sua pele de forma sobreposta tanto o preconceito do capacitismo como da lgbtfobia.
De todo modo, é no final dessa festa que Gabriel dá um beijo em Leonardo. O filme explora a ideia romântica do primeiro beijo. No final da festa há um selinho, e no final do filme há um beijo mais profundo e intenso. Tudo isso gera em quem assiste um sentimento que nos toma, que nos emociona. A trama se encerra com uma cena em que Fábio e seus colegas “zoam” Leonardo e Gabriel por parecerem namorados, ao que os dois reagem pegando um na mão do outro, assumindo publicamente o relacionamento. Em muitos espaços, hoje, dois homens não podem andar de mãos dadas sem correrem riscos de sofrerem violências tanto físicas como verbais. Portanto, quando um casal gay anda de mãos dadas publicamente, esse é um ato transgressor e profundamente corajoso, e é com esse ato que o filme se encerra.
As experiências LGBTQIA+s foram historicamente condenadas com base na ideia de que ela seria imoral, no entanto, o filme nos mostra que tal vivência está ligada ao amor, a autodescoberta, a uma compreensão de si mesmo e a relações saudáveis. Vivemos em um tempo que experimenta diversas possibilidades de constituição sexual e de identidades de gênero. Esses fenômenos, por um lado, são novos ao mesmo tempo que são também uma reconfiguração de experiência sexuais que sempre existiram entre os seres humanos e até mesmo entre espécies animais não-humanas. Devemos tomar cuidado, entretanto, para não transpor categorias modernas relativas às subjetividades e identidades LGBTQIA+ para outras vivências históricas. O que a Modernidade traz de novo é que aquilo que antes era entendido apenas como um comportamento passível de qualquer indivíduo, passa agora a constituir identidades em termos de invenção da subjetividade (ZANELLO, 2018).
Essa associação moderna ente experiência sexual e identidade subjetiva, faz com que a descoberta da própria orientação se torne uma questão identitária. A descoberta da identidade tem um papel essencial na adolescência, pois é nesse momento que descobrimos como nos identificamos, o que ocorre a partir de uma autopercepção de nossos sentimentos e da maneira como vivenciamos nossas interações sociais. Nesse sentido, o filme explora muito bem como a adolescência é o período em que nós nos descobrimos, que passamos a entender nossos desejos e, por conseguinte, é o momento em que uma pessoa pode encarar pela primeira vez e de forma mais consciente o fato de ter uma orientação sexual ou uma identidade de gênero diferente daquela que a sociedade coloca como normal.
A tradição ocidental judaico-cristã fez da sexualidade a raiz de todos os males, condenou as práticas sexuais que se opusessem à reprodução como doenças terríveis, sob um discurso hipócrita lançou sobre a mente de milhares de pessoas um sentimento pesado de culpa pelo menor pensamento que pudesse ser impuro, estabeleceu como regra uma necessidade obsessiva de regular do menor olhar a todos os movimentos da mente e do corpo de modo a manter distante qualquer desejo sexual por mínimo que fosse e de declarar abominável toda e qualquer prática sexual não submetida a um fim reprodutivo no contexto do sagrado matrimônio. Um padrão moral sexual extremamente rígido foi imposto enquanto os que mais defendiam esse padrão eram seus maiores transgressores, esse moralismo escravizou com a culpa ao invés de fornecer liberdade.
É preciso repensar, pois, a sexualidade e, para isso, uma perspectiva social e crítica é fundamental. É preciso questionar a visão da matriz heterossexual compulsória sobre sexo/gênero. Diz-se que a homossexualidade é antinatural, mas o que ocorre, na verdade, é que a homossexualidade transcende a natureza pela existência, assim como toda experiência LGBTQIA+. Trata-se de uma reafirmação do que nos constitui como humanos, da realização de nossa subjetividade e de nossa liberdade de sermos quem somos, de termos nossas identidades afirmadas. É preciso questionar toda forma de marginalização, opressão e exclusão de pessoas que não se encaixam na cis-heteronormatividade.
A luta deve ser para que experiências de amor entre rapazes, como as do filme, se tornem cada vez mais naturais, para que pessoas LGBTQIA+s possam ter liberdade para saírem em público e expressarem quem são sem medo. Somos um dos países que mais mata pessoas LGBTQIA+, que nos nega o direito à existência a todo tempo, que os empurra ao suicídio, que os discrimina, os ataca, os violenta e os exclui. No entanto, é importante dizer, que a luta LGBTQIA+ contra as opressões da matriz heterossexual compulsória requer uma mudança radical, não é suficiente lutar pela superação da LGBTfobia sem eliminar o modo de organização social que oprime. Somente uma mudança radical de toda ordem social vigente pode construir uma sociedade que supere a discriminação sexual. Não basta lutar contra um tipo de opressão sem eliminar o sistema que oprime, não é suficiente batalhar pela libertação do preconceito contra LGBTQIA+s sem exigir um respeito pela dignidade plena de todo tipo de pessoa (DAWSON, 1975).
Acredito que assistir este filme é essencial, que ele sirva como um despertar para que amemos ser quem somos, que acolhamos todo jovem ou mesmo adulto que está num processo de se descobrir LGBTQIA+ e que construamos um mundo mais seguro para pessoas que hoje são marginalizadas pela sua sexualidade. Também, que lutemos contra toda forma de capacitismo, que construamos uma visão interseccional capaz de entender que as diversas formas de opressões sociais não estão desconectadas. Toda pessoa, mesmo cis-heterossexuais, podem se juntar a essa luta e trabalhar em conjunto na construção do respeito, da visibilidade, da legitimação da existência, da desconstrução dos preconceitos e na promoção da diversidade sexual.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BILGE, Sirma e COLLINS, Patrícia Hill. Interseccionalidade. Tradução Rane Souza. São Paulo: Boitempo, 2021.
DAWSON, Kipp. Gay Liberation: A Socialist Perspective. Front Cover. Pathfinder Press, 1975.
FOUCAULT, Michel. História da Sexualidade, 2: O Uso dos Prazeres. 5.ed. Rio de Janeiro, Edições Graal, 1984.
RIBEIRO, D. (Produtor & Realizador). Hoje Eu Queiro Voltar Sozinho. Brasil: Vitrine Filmes / Films Boutique, 2014.
ZANELLO, Valeska. Saúde mental, gênero e dispositivos: cultura e processos de subjetivação. Curitiba: Appris, 2018.
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