Un Traductor (2018) se passa durante década de 1990, em Cuba, quando o governo soviético envia crianças com saúde debilitada pelas reverberações da alta exposição à radiação, expelida pelo acidente nuclear de Chernobyl, ao Hospital Geral de Havana. Posteriormente, estas são levadas ao Hospital Pediátrico de Tarará, pois, é o mais preparado para o tratamento de doenças associadas à radioatividade. Os professores do núcleo de literatura russa da Universidade de Havana são, desse modo, compulsoriamente designados como tradutores para a comunicação efetiva entre os profissionais de saúde e os pacientes do hospital. Acompanhamos ao longo do enredo os dramas de um desses professores, Malin Barriuso, na ala infantil do hospital.
Logo no início, coloca-se que Malin entrevistou uma escritora soviética e esta diz que os cubanos e os soviéticos compartilham da mesma sensação de "isolamento", presente possivelmente por causa da bipolaridade na época da Guerra Fria, entre os blocos capitalista (EUA) e socialista (URSS). Isso interligaria algumas das aproximações entre as culturas que se encontrarão em meio à história, a saber, as crianças russas e suas famílias, junto ao professor cubano. A "distância" entre as linguagens desses sujeitos (espanhol – russo), paradoxalmente, distanciou afetivamente os profissionais da saúde dos pacientes no hospital, e tais professores designados pelo governo serviriam como uma espécie de ponte para algum suporte relacional.
O que está a todo momento presente no filme é a questão do lúdico e as projeções que as crianças buscam oferecer em suas comunicações não-verbais. São expressas de forma mais evidente nos trabalhos propostos por Malin por meio de desenhos, brincadeiras e contação de histórias com as crianças internadas, seja na brinquedoteca, ou mesmo nos leitos individuais. Desse modo, esse escrito busca trabalhar com noções da psicanálise freudo-lacaniana como via interpretativa de momentos do filme supracitado, trazendo contribuições de alguns escritores de literatura que possam alavancar discussões para os fenômenos analisados.
Brincar como operação psíquica e performática
Vorcaro e Veras (2008) colocam que o brincar, da mesma forma como se pode entender as suas expressões em ato – como danças, desenhos, pinturas, poesias –, é uma operação da constituição do discurso corporal de cada criança, que assume os sentidos e lugares que esta se constitui e se desenvolve. Essa operação antecipa ao sujeito os desejos e necessidades ao domínio da língua, do simbólico, do mundo social compartilhado com a alteridade. Não é por um acaso que as crianças por vezes brincam de "ser adultos", para simular algo do que veem em seus pares adultos, mas reeditando para suas próprias formas e possibilidades. Argumenta-se, então, que o brincar vai além do idioma que se tem como herança e, de forma específica, o desenho – como imagem, mas não se reduzindo nunca a só isso –, demonstra-se enquanto uma representação psíquica alienada numa linguagem universal expressiva, mais próxima das culturas dos personagens do filme, que a entrevistada citada anteriormente discorre a respeito.
Na leitura de um livro de contos cubanos para seu filho, Malin é advertido a um erro de leitura por não ter produzido as onomatopeias que o livro demanda – no caso do filme, eram sons de animais –, que estavam intuídas na fantasia e desenvolvimento da história. Há então, posteriormente, uma espécie de repetição da mesma cena na brinquedoteca do hospital com uma outra criança, que Malin a vê e, lendo o livro, faz então as onomatopeias, como demandado anteriormente pelo filho, e essa criança sorri. Partindo para uma análise tendo como norte a literatura, o escritor Saint-Exupéry (2016) traduz muito bem esse sentimento na jornada do pequeno príncipe, admitindo que os adultos não entendem nada sozinhos e é muito cansativo para as crianças ficar sempre explicando tudo. O mundo de fantasia das crianças é algo que deve ser levado a sério e muitas circunstâncias, que naturalmente não seriam prazerosas na realidade concreta, poderiam ser no jogo da fantasia, demandando-se somente levar a sério tudo que se inventa e o que está no registro real – ou mesmo tudo seja uma criação e só o percurso natural da vida demonstre que o fantasiar é dirigido por desejos, diria Freud (1908).
Saint-Exupéry (2016) traz outra reflexão importante que se pode observar também no filme, de que só as crianças conhecem a vida, presente no primeiro questionamento que Alexi, uma criança imunossuprimida que vive isolada, faz a Malin: "você já viu rochas vulcânicas?". Os pensamentos das crianças não são entendíveis frequentemente, pois tal discurso não possui tantas resistências aos devaneios quanto as representações conscientes dos adultos, que podem expressar vergonha de suas fantasias e acabam escondendo-as de si próprios, o que é possível pelo mecanismo de recalque, que desloca os conteúdos de tal natureza para o inconsciente (Freud, 1908). O professor, aos poucos, vai compreendendo como entrar no mundo da infância pelo interesse sobre os assuntos que elas mesmos traziam, como Alexi o questionando sobre como sabia falar russo se ele não morava na União Soviética. Malin conta a ele que já havia estudado numa universidade próximo à cidade de Leningrado, a qual Alexi tinha uma casa de campo e este então começa a contar sobre experiências que teve lá quando mais novo. Foi-se constituído uma transferência afetiva poderosa entre tais personagens, e ao passar do filme observamos menos dessa resistência do professor sobre suas fantasias infantis, dando uma potência maior às elaborações futuras com as crianças sobre experiências lúdicas.
Viver é não pensar? Então vamos fantasiar!
Em seus primeiros dias no hospital, após conhecer Alexi e se interessar pelas crianças internadas, levando em conta as demandas mais fantasmáticas infantis, Malin observa que a brinquedoteca fornecida às crianças pelo hospital era muito apática, sem muitos brinquedos espalhados e as crianças no ambiente não demostravam nenhum interesse pelo local. Ele decide então pegar um livro e "viajar sem nenhum veículo" com as crianças por meio de contação de histórias cubanas de uma forma lúdica, com todas as onomatopeias possíveis, podendo estas então se tornarem às crianças realmente narrativas novas, reinvenções, um entendimento maior sobre suas vidas naquele ambiente aparentemente "sem vida colorida". Essa é operação possível pelo que Vorcaro e Veras (2008) denominam de figurabilidade do brincar, que ultrapassa a representação das vivências, ao passo de realização de desejos mais diversos.
O brincar, nesse ponto, aproxima-se da criação artística, tecendo as fantasias, reconciliando o inconciliável e realizando os desejos das crianças e dos adultos, assim podendo antecipar novas combinações de traços vivenciais (Vorcaro & Veras, 2008). Lugar es que possuíam um significado anterior ganham novos por meio da reevocação com elaborações distintas, uma repetição que nunca se expressa pela simples reprodução do mesmo.
A maior representação de como o desenho é importante para a apreensão do aspecto emocional da criança e uma forma de escoamento de angústia, no filme em questão, é mostrado na cena em que Malin pede à Alexi que escreva em palavras o que sente, já que este não gosta muito de se expressar seus afetos pela fala. A criança, então, faz um desenho que parece um arco-íris que caía no chão com grande intensidade, ao passo que Malin pede para ele simbolizar pela fala o que produziu. Alexi se expressa por meio de um monólogo sobre o acidente: as cinzas trazidas pelos ventos foram respiradas pelas crianças e a escuridão chegaram nelas, e ele só quer que a luz do Sol retorne a ele sem essa "presença perigosa", possivelmente falando sobre a radioatividade. Demonstra-se que Alexi não está feliz com sua situação, porque apenas o insatisfeito fantasia para realizar desejos, ou seja, para correção da realidade que se mostra insatisfatória (Freud, 1908). Tal ideia é fortalecida pelo conto que Malin conta à criança, do apicultor que quer conhecer mais o mundo, sair de sua vivência minimizada pela fixação em um ambiente, como Alexi no hospital, e não tinha muitas esperanças de sair de lá muito cedo.
Utilizando-se do mecanismo de deslocamento psíquico que Goethe, famoso romancista alemão, escreve o romance Os Sofrimentos do Jovem Werther e se salva de suas fantasias de suicídio, projetando-as no personagem em questão (Freud, 1897). Do mesmo modo, Alexi desenha e por meio de tal é escoada muita angústia, como também simboliza que ele só almeja retornar a sua vida cotidiana em meio aos outros e com o vislumbre do Sol, sem perigos tão eminentes e reais. Observa-se que muito das expressões das crianças são condensadas em suas brincadeiras, sendo possíveis diversas interpretações, mas somente com a associação do artista "brincante" que se pode chegar a entendimentos mais próximos da simbologia inconsciente, como um analista interpretando o sonho de um paciente (Freud, 2001 [1900]).
O brincar e o fantasiar se encontram presentes então nas diversas crianças internadas no hospital e Malin, observando esse fato, consegue trazer atividades em que o lúdico se faria muito presente, como a musicalização e o uso de papeis para desenhos e dobraduras. Esta última expressa na cena em que uma criança faz um avião de papel com a folha entregue a ele, por entender que se poderia usar a criatividade e fazer o que viesse à sua mente.
Freud (1908) reforça que a atividade que mais agrada as crianças é o brincar, sendo despendida muita energia e afeto para tais. Elas se comportam como poetas, continua o autor, na medida em que transpõem os objetos do real a uma ordem que mais lhe agradam, o mundo das fantasias, seu mundo de brincar. O caráter mais complexo da natureza do desenho, mais especificamente, é ser concomitantemente uma transitoriedade e uma sabedoria, criando por meio de traços convencionais os finitos de um gesto ou momento (Andrade, 1984). Há um aumento de valor do belo por meio dessa transitoriedade, elevando de diversas formas as possibilidades de fruição e simbolismo que os desenhos podem expressar (Freud, 1916), por conta de a fantasia pairar sobre os três momentos temporais de nossa imaginação. Freud (1908) coloca que "passado, presente, futuro se alinham como um cordão percorrido pelo desejo, [...] utiliza-se uma oportunidade no presente para projetar, segundo um modelo do passado, uma imagem do futuro" (pp. 58-59), ou seja, o escoamento pelo desenho sempre trará esse caráter de nunca ter a mesma natureza ou essência, mas sempre ser uma nova produção.
A transitoriedade entre a vida e a morte
Por estar isolado das demais crianças, Alexi pergunta à Malin como elas são, ao passo que ele fecha os olhos para imaginá-las por meio das palavras de Malin, utilizando então o mesmo mecanismo usado pelos sonhos para expressar conteúdos auditivos em imagens, chamado de figurabilidade, linguagem a qual se traduz conteúdos latentes em manifestos (Freud, 2001 [1900]). Malin tem a ideia de que cada criança escreva sobre si mesmo em um papel para, posteriormente, entregar à criança isolada, e o mais cômico é que todos fazem desenhos, pouca escrita por meio de palavras. Por meio das diversas atitudes, observa-se que Alexi fica cada vez mais próximo de Malin e dos outros. Nos últimos momentos que ficam juntos, há uma queda de energia ao qual a criança cai da maca; Alexi diz à Malin "parece que você me escuta", com este expressando choque ao ouvir e entender que ele entrou no mundo da criança, criando-se ali um vínculo afetivo que ambas as partes entendiam como importante.
Freud (1916) argumenta que a ideia de transitoriedade do que nos sensibiliza ao vislumbre estético fornece a nós sensibilidade a uma prova sobre os lutos que perpassam nossa existência, como uma paisagem que muda ao passar das estações do ano, e nossa alma recua diante do que é doloroso. O autor então deduz que se os objetos são destruídos ou perdidos, nossa capacidade de amor se liberaria a novos objetos, mas não é o que geralmente acontece espontaneamente, por causa do processo de luto ativado pela perda. Este estado demonstra que o sujeito não quer desistir dos objetos perdidos de amor de forma alguma, e o que se demonstra é que "somos eternamente responsáveis pelo que nos cativa" no momento ao qual cada criança presente no hospital se torna singular (Saint-Exupéry, 2016). Nenhum luto é totalmente elaborado e sempre carregamos cada objeto perdido em nós mesmo, de alguma forma, por meio de uma mínima negação da perda pela identificação com este que já se foi.
Após a morte do garoto por uma cirurgia malsucedida, existe um baque em Malin e a enfermeira que o acompanhava. No trabalho de contação de histórias, as crianças conseguiam observar a tonalidade melancólica da voz e nas expressões do professor, provavelmente hipotetizando a perda do garoto que propiciou a eles um grande momento lúdico de projeção de si próprios por meio da criação artística. Saint-Exupéry (2016) demonstra bem tal ideia, colocando que só as crianças sabem o que procuram, e demonstrando por meio de uma das passagens mais importantes, a da raposa falando ao pequeno príncipe que não brinca com que não o cativa, explica-se que tal processo é de criar vínculos afetivos.
Esse processo é esquecido e demonstrado no não-movimento espontâneo dos outros profissionais da saúde do hospital para com a aproximação afetiva com as crianças internadas e seus familiares, que transforma cada sujeito em único, e a importância para um outro só se forma nas relações mais íntimas. Por meio disso, uma nova projeção se envolve no retorno de Malin ao foco de suas relações familiares, contando histórias com um caráter mais fantasmático e brincando com o filho, o que este, de certa forma, já demandava ao pai desde o início do filme e foi se perdendo ao longo pelo foco do trabalho do pai com as crianças do hospital.
Uma outra criança que nos intriga é a que aparece se escondendo de Malin, que ao ser perguntada de quem ela está se escondendo, diz que tem medo de Deus levar ela como levou outra criança. Vorcaro e Veras (2008), trazendo a discussão sobre o movimento do Fort-da e os jogos de esconder empreendidos por Freud em Além do Princípio do Prazer, pode trazer a alusão de que tal criança brinca de desaparecer para não ser encontrada pela figura, e o simples não-vislumbre dela por estar debaixo da coberta já é o suficiente para a fantasia dela dizer que está protegida. Diferentemente do neto de Freud, tal criança não quer retornar como surpresa a imagem do Deus que busca as crianças, que acabam não retornando; por brincar de "ir embora", deseja somente se manter no seu mundo fantasmático em que está segura de qualquer enfermidade ou perigo do mundo real. Não se pode observar tais movimentos nos adultos a sua volta, que acabam somente por focalizar no pertencimento dos ambientes, escondendo as angústias por meio de drogas para dormir ou alcoolizar – os adultos se envergonham de suas fantasias e as esconde dos outros (Freud, 1908), podendo ter assim vários destinos.
Adultos na sala, arte no ar... fantasia presente!
O que se traz como um cômico trágico no filme é a atribuição reducionista de Malin às obras de arte de sua esposa, ao passo que incentiva as crianças a criarem livremente desenhos e escritas que possuem significados mais diversos. A criação artística é um modo de fantasiar dirigido ao desejo como se faz o brincar infantil, e possivelmente Malin observa que, como sua esposa já é adulta, não deveria ficar fantasiando e que espera que ela aja no mundo real com algum trabalho que categoriza como árduo e que traga contribuições "concretas" à sociedade. Freud (1908) poderia atribuir a isso um repúdio à criação próxima a nós e que, por isso, deveriam ser ocultadas, mas apreciada em outros que possuem renome nas mídias e história.
As fantasias dizem muito da constituição do sujeito e seus desejos, sendo entendido a colocação da esposa de Malin "quando fala mal deles [dos quadros dela], fala mal de mim". A projeção em um quadro coloca à mostra o mais sublime e interno das pessoas que o fazem, e falar mal de uma produção livre desse modo ataca o sujeito em suas representações inconscientes que este pode não se saber o que é, mas de toda forma é um saber que não se sabe que diz algo sobre o sujeito, tomado como um veículo simbólico-imaginário que externaliza o mundo interno, como acontece mais especificamente na produção de desenhos.
Ademais, observa-se a identificação negativa de Malin com os pacientes, por não ter escolhido estar naquele lugar, e o seu afastamento de sua família já tida com filhos, traduzindo pela fala do guarda-chaves de que nunca estamos contentes onde estamos, ou mesmo pela alta entonação do pequeno príncipe ao aviador de que os pensamentos infantis são tão mais importantes quanto um mero conserto de um avião esquisito (Saint-Exupéry, 2016). A condição pessoal do professor frequentemente interfere na sua condição profissional, do mesmo modo ocorre na outra direção, demonstrando que todos os ambientes vão sendo significados pela nossa subjetividade e todas nossas ações, desde contar histórias de um livro para crianças ou até mesmo discutir sobre rochas vulcânicas, são formações substitutivas de brincar concretas e objetivantes, ou seja, ao modo adulto de ser (Freud, 1908).
Finalizado então com uma colocação de Freud (1908) que nos atiça à compreensão de todos somos artistas e, dessa forma, nunca podemos deixar o potencial criativo e prazeroso, que viveu em nossa mais tenra infância, se esvaziar pelos mandamentos de um sistema econômico que busca lucrar com tudo: "Sou da opinião de que todo prazer estético, criado pelo artista para nós, contém o caráter deste prazer preliminar e que a verdadeira fruição da obra poética surge da libertação das tensões de nossa psique" (p. 64).
Referências Bibliográficas:
Andrade, M. (1984). Do Desenho. In M. Andrade, Aspectos das Artes Plásticas no Brasil (pp. 65-71). Belo Horizonte: Itatiaia.
Freud, S. (1897). Trecho do Manuscrito N, Anexo à Carta a Fliess. In G. Iannini. (Ed.) (2017). Arte, Literatura e os Artistas (pp. 43-44). Belo Horizonte: Autêntica.
Freud, S. (2001 [1900]). O Trabalho do Sonho: O Trabalho da Condensação; O Trabalho do Deslocamento; Meios de Representação nos Sonhos; Consideração à Representabilidade. In S. Freud, A Interpretação dos Sonhos (pp. 276-344). Rio de Janeiro: Imago.
Freud, S. (1908). O Poeta e o Fantasiar. In G. Iannini. (Ed.) (2017). Arte, Literatura e os Artistas (pp. 53-66). Belo Horizonte: Autêntica.
Freud, S. (1916). Transitoriedade. In G. Iannini. (Ed.) (2017). Arte, Literatura e os Artistas (pp. 221-225). Belo Horizonte: Autêntica.
Saint-Exupéry, A. (2016). O Pequeno Príncipe. Barueri: Ciranda Cultura.
Un Traductor. Direção: Rodrigo Barriuso/Sebastián Barriuso. Produção: Creative Artisans Media/Involving Pictures. Cuba: Galeria Distribuidora, 2018.
Vorcaro, A.; & Veras, V. (2008). O Brincar como Operação de Escrita. Estilos da Clínica, 13(24), 24-39.
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