Nelson Rodrigues é certamente um dos maiores dramaturgos que já tivemos no Brasil. Mas, para além dos palcos, na sala escura sua obra também mantém íntima relação. Já são pelo menos 23 filmes que se embasaram no que o anjo pornográfico escrevia. O beijo no asfalto, um de seus maiores textos, ganhou três adaptações para o cinema. Em 1964, Flávio Tambellini faz sua estreia na direção com O Beijo, Bruno Barreto filma em 1980 a sua versão e em 2018, chega a vez de outro estreante, Murilo Benício. As duas últimas adaptações, ambas homônimas da peça, aqui passarão por uma breve análise crítica, buscando, em especial perceber onde texto e filmes se cruzam, se repelem, se equivalem.
Se tratando de adaptações, os adaptadores precisam fazer escolhas. O cinema e a literatura vivem uma relação simbiótica, mas ao mesmo tempo ingrata. O cinema, quase sempre, precisa de um roteiro escrito com diálogos para se fundamentar. Muitos acreditam na criação de uma comparação entre as duas linguagens artísticas, buscando encontrar qual versão de uma determinada obra atingiu o seu ápice. “O livro é melhor que o filme” ou “O filme é melhor que o livro” são frases recorrentes nas discussões entre cinéfilos e bibliófilos. Não é necessariamente sobre isso que iremos falar aqui. Vou preferir me ater as condições inegociáveis de cada linguagem, me livrando de comparar o que não tem brecha para comparação. Cada um no seu quadrado.
Aqui vai uma breve sinopse: Um sujeito acaba de ser atropelado e pede um beijo para o último homem que verá na vida. Arandir, um homem casado, atende ao pedido, num ato de misericórdia. Amado Ribeiro, jornalista esculhambador da cidade do Rio de Janeiro, assiste ao ato e cria, mancomunado ao delegado Cunha, um escândalo de grande repercussão na imprensa e na sociedade civil carioca.
O texto rodrigueano é tido por muitos como uma tragédia. Há n’O beijo a tensão da inevitabilidade. Seus personagens parecem isolados, encarcerados em seus destinos e nas consequências diretas das próprias ações e das ações de quem vive no entorno. Arandir, Selminha, sua esposa e Aprígio, pai de Selminha, se destacam nesses aspectos. Ainda que comecem o espetáculo à mercê de suas reviravoltas, todos se transformam ao longo do texto, sem que consigam contornar as situações. Arandir se mostra incapaz de prosseguir, Selminha sucumbe as notícias do jornal e Aprígio, engodado pelo desejo, acaba por assassinar seu genro.
Nos diálogos dessa tragédia, Rodrigues recorre ao retrato do cotidiano, também para manifestar os predicados de seus personagens. As falas são recorrentemente interrompidas, ao mesmo tempo incompletas por quem as diz:
ARANDIR
— Senta comigo.
SELMINHA
— É verdade quê?
ARANDIR
— Um beijo.
SELMINHA (com surda irritação)
— Primeiro, responde. Preciso saber. O jornal botou que você beijou.
ARANDIR
— Pensa em nós.
SELMINHA
— Com outra mulher. Eu sou tua mulher. Você beijou na...
ARANDIR (sôfrego)
— Eu te contei. Propriamente, eu não. Escuta. Quando eu me abaixei. O rapaz me pediu um beijo. Um beijo. Quase sem voz. E passou a mão por trás da minha cabeça, assim. E puxou. E, na agonia, ele me beijou.
Essa maneira em que é conduzida a história, se valendo de frases truncadas e réplicas incompletas, contribui para a criação de tensão entre os personagens estabelecida durante toda a obra, bem como o suspense para com as ações, que instigam o leitor. Ainda servindo esses quesitos, as rubricas apresentam descrições precisas e objetivas, abrindo mão da figura de um narrador, sem se interessar tanto por cenários, espacialidade, matéria, deixando aos personagens a função de determinar os caminhos do texto, criando uma atmosfera textual muito particular.
Na adaptação dirigida por Bruno Barreto, há uma mescla curiosa. Afim de concretizar a densidade que o texto apresenta, usa de alguns estilos para compor esse ideal. Numa consolidada narrativa linear, existe um certo tom melodramático na forma de atuação do elenco, ao passo que é naturalista na composição das visualidades do filme. Ainda que a direção de arte não tente remontar a época em que o texto se passa – e isso fica evidente nas roupas, nas casas, nos carros – mas circunda o subúrbio do Rio de Janeiro, buscando encontrar a materialidade contida no texto, contemporânea ao ano de seu lançamento, 1980. Dentro desse tom melodramático nas atuações, existe também um diálogo com o expressionismo, sobretudo no que toca as atuações de Tarcísio Meira e Ney Latorraca. Impostadas, resistem ao traço cotidiano inserido no texto de Nelson Rodrigues, mas, ao mesmo tempo, não se distanciam de características que constituem os personagens da obra original. O Aprígio de Meira transparece solidez e solidão, enquanto Arandir, interpretado por Ney Latorraca, consternado, conduz uma certa fragilidade nas suas relações e decisões.
A encenação de Bruno Barreto vai perseguir durante todo o longa esse ideal naturalista, que se atenta para a raiz de um dado importante do texto de Nelson. O Beijo no Asfalto é uma tragédia carioca. Apesar de ser filmado em sua grande maioria em cenas internas, numa lógica até mais próxima do teatro, há no retrato feito do Rio de Janeiro, tons de cinza, sujeira. Passeamos por vários lugares que fogem dos cartões postais, que em muito acompanham e evidenciam em um paralelo visual, a corrupta polícia e a imoralidade do jornalismo sensacionalista.
Nesse ponto, faz sentido o filme estar situado nos anos 80. Politicamente, a ditadura militar já não era como em seu começo, mas a repressão dos direitos humanos e uma grande mentalidade moralista ainda habitam a mentalidade da população. Além das personagens da trama que com o passar do tempo caminham sempre em direção à condenação de Arandir, há trechos em que Barreto pede licença a Nelson Rodrigues e, por exemplo, amplia a discussão convidando a sociedade civil a opinar sobre a situação em um telejornal.
Os últimos momentos do filme, o embate entre Aprígio e Arandir, genro e sogro, são os mais marcantes da obra. O uso da trilha sonora, que ao longo do filme, vai servindo como base para a criação de momentos de tensão, aqui especialmente contribui para a poética e a intimidade do beijo entre os rivais. O plano estático – mais uma vez evocando as origens teatrais do texto – se destaca pela amplitude, pela profundidade de campo da fotografia, que captura a sensação urbana que chega em seu ápice nessa cena. Os letreiros de neon banham de vermelho a rua, podendo ser sangue, podendo ser paixão. Mais uma vez, elementos do cotidiano carioca atravessam a tragédia de Arandir, que morre em frente aos Arcos da Lapa, ponto turístico do Rio de Janeiro.
Bem, a essa altura já não era mais o primeiro beijo, nem a primeira vez, mas certamente Murilo Benício foi quem mais se empenhou em inovar em mais uma adaptação. Benício cria uma obra que se transita muito bem entre gêneros e aponta para uma estética muito própria, buscando, diferentemente de Barreto, a ambiguidade dessa história.
Em um primeiro momento, podemos perceber como absurdamente Nelson Rodrigues ainda se faz atual. Com ares de experimentação na sua encenação, a direção aqui consegue extrair e evidenciar camadas dos problemas contidos no texto escrito em 1960, que estão latentes até hoje. Se em 1980, caminhávamos para a saída de um governo totalitário, em 2018, retornaríamos a flertar com o autoritarismo elegendo um ex-militar despreparado. E tudo isso vai escoar nos discursos do filme.
Igualmente corruptos e nefastos são as personagens de Cunha e Amado Ribeiro, mas há uma diferença importante no que toca a atuação dos atores. Aqui, o naturalismo está no corpo e na voz dos atores, buscando a veemência de diálogos com muita fluidez, intercalados de silêncios que ajudam a conduzir a complexidade do problema e a dúvida que se instaura. O tom da atuação difere bastante do longa de Barreto. Aqui existe uma condução formal expressiva, escolhida por Benício ao dirigir seus atores, que acaba por produzir nos diálogos de todos os personagens muita autoridade, muita força.
Outro detalhe é a escolha por Lázaro Ramos para viver o papel de Arandir. Por ser um corpo negro, o filme assim, amplia questionamentos narrativos diante das ações dos personagens em torno do fatídico acontecimento. Fica inevitável pensar que além de homofobia, há racismo na arapuca criada para a queda de Arandir.
Murilo Benício, para além da concepção e feitura do filme, quer sim prestar uma homenagem. A primeira cena de ficção do filme vai deixar clara as suas intenções. Temos o uso de uma câmera subjetiva, que coloca nós, espectadores, no ponto de vista de Arandir, no exato momento em que ocorre o atropelamento. Existe o desejo de que façamos parte desse filme. Enquanto público, vamos sendo convidados a acompanhar, não só a ficção, mas também as parcelas de vida real executadas pelo filme, enquanto o filme busca compreender o texto e referenciar hábitos já velhos do povo brasileiro, com Amir Haddad dando voz a esse pesquisador.
A ambiguidade da história, vai dar o tom de toda a encenação do filme. Os elementos técnicos são guiados por esse norte. Temos, nessa fluidez de gêneros, uma montagem que nos apresenta a perspectiva dos atores em preparação, nos batepapos que estão afim de dissecar e aprofundar, em análise, à dramaturgia. Em determinadas cenas, desafia-se a diegese da história, revelando todo o jogo por trás da construção do filme, as trucagens, as câmeras, o cenário e até a plateia, num palco de teatro italiano, espaço em que o filme é quase todo filmado.
Uma ode ao teatro, à Nelson Rodrigues e ao texto, O Beijo no Asfalto, esse que é concretizado pelos atores em sua integridade, com pouca ou nenhuma alteração. Benício faz cinema, mas mescla os códigos das construções cinematográficas com a carpintaria do teatro. Vemos em cena um filme híbrido, com uma história de crime, uma tragédia, um making off, um documentário, um filme noir. Isso acontece com muita maciez, há um toque sofisticado nessas transições de gênero. Entramos do bastidor para a cena em um piscar de olhos, tudo isso numa fotografia preto-e-branca, que se ressalta no uso da iluminação cênica, que contribui para a que exista uma relação confluente nas mudanças: vida real, fantasia, esconde, revela, efeitos que reforçam os tons ambíguos do filme e hipnotizam o espectador.
Murilo Benício é audacioso ao compor seu filme, propondo uma desconstrução do texto, da peça, do filme, enquanto reforça sua admiração por todo o universo que o circunda. Bruno Barreto vai fundo no processo de materialização do mundo criado por Nelson Rodrigues e cria personagens que só poderiam pertencer ao seu filme. Duas obras marcantes que nos ajudam a entender sobre o Brasil de ontem e de hoje, sob a marcante lente de Nelson Rodrigues. Nelson Rodrigues deixa em seu legado um texto que move e comove realizadores de várias gerações e épocas, eternizando sua obra nas telas grandes.
Pedro Solirian
Instituto de Arte - IARTE
Graduação em Teatro
REFERENCIAL TEÓRICO:
RODRIGUES, Nelson. O beijo no asfalto. Nova Fronteira, 2019.
O BEIJO no Asfalto. Direção: Bruno Barreto. Produção: Fábio Barreto, Luiz Carlos Barreto. 1980, disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=1YMo2PTHHYA.
O BEIJO no Asfalto. Direção: Murilo Benício. Produção: Murilo Benício, Marcello
Ludwig Maia. 2018, disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=ZjB_RGZMHyc&t.
MIRANDA, Marcelo. Nelson, o mais adaptado nas telas. O Tempo, 18 de agosto de 2012. Disponível em: https://www.otempo.com.br/diversao/magazine/nelson-o-maisadaptado-nas-telas-1.321071. Acesso em: 9 de junho de 2021.
FIORE, Matheus. Beijo no Asfalto. Plano Aberto, 4 de dezembro de 2018. Disponível em: https://www.planoaberto.com.br/critica/beijo-no-asfalto/. Acesso em: 9 de junho de 2021.
O Beijo no Asfalto (2018). IMDb. Disponível em: https://www.imdb.com/title/tt9365634/fullcredits/. Acesso em: 9 de junho de 2021.
Beijo no Asfalto (1980). IMDb. Disponível em: https://www.imdb.com/title/tt9365634/fullcredits/. Acesso em: 9 de junho de 2021.
VASCONCELLOS, Luiz Paulo. Dicionário de teatro. L. e PM Editores, 1987.
PALLOTTINI, Renata. O que é dramaturgia. Brasiliense, 2017.
QUARESMA, José Francisco. O beijo no asfalto: linguagem, personagens, gênero.
Terra roxa e outras terras: Revista de Estudos Literários, v. 14, p. 56-65, 2008.
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