O testamento dizendo ao herdeiro o que será seu de direito, lega posses do passado para um futuro. Sem testamento ou, resolvendo a metáfora, sem tradição - que selecione e nomeie, que transmita e preserve, que indique onde se encontram os tesouros e qual o seu valor - parece não haver nenhuma continuidade consciente no tempo, e portanto, humanamente falando, nem passado nem futuro, mas tão somente a sempiterna mudança do mundo e do ciclo biológico das criaturas que nele vivem. O tesouro foi assim perdido, não mercê de circunstâncias históricas e da adversidade da realidade, mas por nenhuma tradição ter previsto seu aparecimento ou sua realidade; por nenhum testamento o haver legado ao futuro.
(Hannah Arendt, Entre o passado e o futuro)
O premiado filme brasileiro, Narradores de Javé, roteiro de Luiz Alberto Abreu e de Eliane Caffé, direção de Caffé, de 2003, narra o drama vivido pelos moradores do Vale de Javé, interior da Bahia, vilarejo que será inundado com a construção de uma usina hidrelétrica. O lugar onde cresceram e viveram, em pouco tempo será apagado, suas casas, seus ancestrais enterrados, suas memórias estarão submersas.
Havia uma saída, mostrar às autoridades a importância das histórias das origens do Vale de Javé. Se houvesse algo que pudesse ser feito para salvar a cidade, os moradores fariam. Tiveram uma reunião com os responsáveis da empresa energética e ouviram que “só não inundam quando a cidade tem alguma coisa importante, história grande” (NARRADORES, de Javé, 2004). A comunidade então se mobiliza para construir uma epopeia que salvará Javé das “águas do desenvolvimento”. O problema é que o único que consegue escrever com fluência no povoado é Antônio Biá, o sujeito mais detestado da região. Não havia outro recurso, só ele poderia "escrevinhar" as origens dos guerreiros do povoado, transformando a cidade num patrimônio histórico cultural e salvar a cidade de ser inundada.
A narrativa ficcional retrata os traumas e angústias de pessoas que foram obrigadas a abandonarem suas casas, suas cidades, suas histórias para a construção de usina hidrelétrica arquitetadas para atender a lógica burguesa, produzir energia para as indústrias, legitimado por um projeto de progresso, “sacrificar uns tantos para beneficiar uma maioria. A maioria eu não sei quem são (sic), mas nós que somos o tanto do sacrifício”, como desabafa Vado, personagem interpretado por Rui Resende. Sabemos que uma grande parcela dessa energia produzida é para abastecer as indústrias, atender a lógica do mercado e do consumo.
Para além dos desequilíbrios ambientais, da destruição da fauna e flora das regiões atingidas, tais práticas de expulsão dos moradores de áreas estratégicas são permeadas por uma violência simbólica, impõem deslocamentos e desapropriações compulsórias de inúmeros ribeirinhos, obrigando-os a deixarem tudo para trás e reconstruírem uma nova vida, muitas das vezes em situação ainda pior (REBOUÇAS, 2000).
Em 2009/2010 tive a oportunidade de participar de um projeto de pesquisa pela Universidade Federal de Uberlândia, o Programa de Preservação do Patrimônio Histórico-Cultural da Serra do Facão, que tinha como objetivo realizar um levantamento dos moradores que seriam afetados pela construção da barragem que inundaria a zona rural de seis cidades: Paracatu-MG, Monte Alegre de Minas-GO, Davinópolis-GO, Cristalina-GO, Catalão-GO e Ipameri-GO. Nessa empreitada, foi possível presenciar a dor e desespero das pessoas em terem que abandonar as terras que sempre viveram e construíram suas trajetórias. Muitas das políticas compensatórias são insuficientes, a remuneração aquém dos valores justos, num ambiente de forte especulação imobiliária. A maior dificuldade, relataram os afetados pela Usina Hidrelétrica Serra do Facão, em Catalão-GO, era o estabelecimento de suas atividades cotidianas, transformando o seu modo de viver tradicional. As indenizações eram realizadas antes das instalações das barragens e rapidamente as terras que não seriam afetadas eram inflacionadas. Muitos eram obrigados a se mudarem para as cidades. De um lado, a lógica do progresso, a necessidade de gerar cada vez mais energia para o mundo dito civilizado, contrastando com o modo de vida de caipiras ribeirinhos que seguem uma outra lógica temporal, marcado pelos ciclos da natureza, testemunhara produção de um empreendimento energético transformar o ethos original de uma população.
Narradores de Javé surge em um momento riquíssimo do cinema nacional, herdeiro do cinema da retomada (1995-2002). Diversos enredos denunciando temas sensíveis como a loucura, a violência na periferia, o racismo, a condição da mulher, a desigualdade social, a ditadura militar, entre tantos outros, desnudam um país redemocratizado no papel, mas ainda com muitas contas a acertar, fruto de uma herança histórica repleta de crueldade e injustiças. Desse modo, “[...] lembrar não é reviver, mas re-fazer. É reflexão, compreensão do agora a partir do outrora; é sentimento, reaparição do feito e do ido, não sua mera repetição.” (CHAUÍ, 1983, p. 20).
O filme, como qualquer outro documento, baseado em “fatos reais” ou ficcionais, nunca é neutro, está cheio de intencionalidades, crenças, valores, elabora um discurso, não é o espelho da realidade. As escolhas das imagens, a confecção do roteiro, a inserção da trilha sonora, entre outros, são construções que obedecem às inquietações dos sujeitos envolvidos na produção da obra e dessa apropriação do vivido e tais produções são importantes para compreendermos a complexidade das relações humanas, plurais, múltiplas, contraditórias (FERRO, 1992).
Nesse contexto, o filme dirigido por Caffé em 2003 nos deixa inúmeras reflexões, para além da violência imposta aos moradores, obrigados a abandonarem suas casas, inundadas pela construção da barragem. A tensão da trama é marcada pela tentativa de produção de uma memória histórica, a confecção de um dossiê que pudesse barrar a inundação do Vale de Javé. O desenrolar das narrativas apresentadas pelos moradores são fascinantes, as diferentes maneiras de contar o vivido e as disputas pela memória, as diferentes versões acerca da origem da cidade e a maneira como as interpretações vão se sobrepondo e contradizendo, revela a riqueza cultural do lugar, não para a história hegemônica, mas aos olhares do espectador que se sensibiliza ver o sofrimento daquele povo e a materialização de uma violência simbólica (KATRIB; MACHADO, 2010). O plano falhou, não conseguiram produzir uma obra que mostrasse a importância de Javé e a cidade foi alagada, mas não é isso que importa. Os roteiristas nos levam a debater sobre a história dos vencidos, o modo de viver de uma comunidade que teve suas memórias apagadas. O filme tem a sensibilidade de nos trazer um tesouro soterrado, os enredos negligenciados pela lógica dos vencedores surgem como narrativas de extrema riqueza e complexidade.
Referências
BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2001.
CHAUÍ, Marilena. Os Trabalhos da memória. In: BOSI, Ecléa. Memória e Sociedade: lembranças de velhos. São Paulo: Edusp, 1987.
FERRO, Marc. O Filme: Uma Contra-Análise da Sociedade? In: Cinema e História. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1992.
FOUCAULT, Michel. Isso Não É um Cachimbo (1968); O que é um Autor? (1969). In: Ditos e Escritos III – Estética: Literatura e Pintura, Música e Cinema. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2009.
KATRIB, C. M. I.; MACHADO, M. C. T. (org.); São Marcos do Sertão Goiano: cidades, memórias e cultura. Uberlândia: EDUFU, 2010.
NARRADORES de Javé. Direção: Eliane Caffé. Bananeira Filmes. Brasil: Riofilmes, 2004. 1 DVD.
REBOUÇAS, Lídia Marcelino. O Planejado e o Vivido: o reassentamento de famílias ribeirinhas no Pontal do Parapanema. São Paulo: Annablume, 2000.
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