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Foto do escritorPET Paideia

Novo Extremismo Francês: da Censura à Consagração


“(...)

Num claro-escuro, um cara a cara:
Um coração que a si se espelha!
Poço de Verdade, centelha
Negra – e, vaga, uma estrela rara –,

Farol irônico, infernal,
Tocha das satânicas graças,
Um alívio e glória sem jaças
– Toda a consciência que há no mal!”

Charles Baudelaire, O Irremediável.


Nos créditos de Love (2015) do Gaspar Noé há uma seção intitulada “The Director Thanks” onde se encontram os nomes de Virginie Despentes e Coralie Trin Thi. Love se constitui no conceito, elaborado anos antes pelo diretor argentino, de realizar um filme onde o sexo e as relações afetivas fossem indissociáveis. Passaram-se os anos e as condições para realizar tal feitio chegaram. Já havia no catálogo do cinema de arte mainstream Azul é a Cor Mais Quente (La Vie d’Adèle, 2013) de Abdellatif Kechiche e Ninfomaníaca (Nymphomaniac, 2013) de Lars von Trier, sendo o primeiro citado por Gaspar Noé como correspondente à proposta de Love. Mas antes da indústria cultural consumar sua inveja da pornografia, a dupla homenagiada por Gaspar Noé já havia, em 2000, realizado Baise Moi (numa melhor tradução, literalmente Me Fode). O filme conta a história de duas jovens franco-hispânicas que iniciam uma road trip de sexo e violência. A pornografia executada em sua visceralidade. Numa cena em que a personagem de Karen Bach está se prostituindo, há um plano-contra-plano que mostra uma cena de Carne (média-metragem de Gaspar Noé de 1992) em que é cortado um salame, alternadamente à face de desinteresse da personagem; a cena se encerra com um close do rosto patético do cliente ao ejacular dentro dela. Despentes e Trin Thi ironizam ao longo de todo filme os fundamentos falocêntricos da pornografia, executando, precisamente, um filme pornográfico. E quando as duas personagens matam brutalmente um homem, só porque ele não queria transar com elas sem camisinha? A gente não faz sexo de plástico. Tal fala da personagem de Raffaëla Anderson explicita aquilo que o filósofo trans Paul B. Preciado afirma como a realidade estritamente plástica do sexo, que o sexo não é uma prática natural, mas que sua própria naturalização é produzida enquanto saber-poder (ver: Manifesto Contrassexual). Simultaneamente, tal enunciado também explicita o próprio caráter do filme: a crueza inerente ao sexo. Para isso as diretoras vão no caminho contrário ao de Love; o sexo precisa ser desinteressado; tal como a violência, gratuito. A reação das autoridades francesas foi censurar o filme, limitando sua circulação ao doméstico por meio de DVDs; sobre isso Preciado escreveu: “Aterrorizados por seu próprio vício pornográfico e pela possível visibilidade de seus paus flácidos, uma associação de censores ataca o filme como forma de dizer “não à pornografia”. Filhos da puta de merda (...)”. (PRECIADO, 2018, pg. 91). Mesmo sendo uma adaptação do romance homônimo de Despentes, a mídia ainda negligenciou o fato de que se trata de uma coautoria. Trin Thi, atriz pornográfica, ficou de lado enquanto Despentes era tratada como “a intelectual por trás do filme”. No livro teórico-autobiográfico Teoria King Kong Despentes relata:


Mas a força com a qual eles lhe recusavam, na sequência, o direito de ser capaz de fazer outra coisa causava desconforto. (...) Impossível ter sido uma criatura sulfurosa e depois demonstrar invenção, inteligência e criatividade. Os homens não desejam ver o objeto de suas fantasias sexuais sair da moldura específica a que eles o haviam confinado (...) era necessário sequestrar as palavras de sua boca, impedir seu discurso, proibir sua fala. Até nas entrevistas, nas quais suas respostas eram impressas mas sempre atribuídas a mim. Não me concentro aqui sobre alguns casos isolados, mas abordo reações quase sistemáticas” (DESPENTES, 2016, pg. 81-82).

Isto demonstra uma segunda hipocrisia: Despentes já havia se prostituído, escreveu sobre isso. Mas uma vez tornado escrita, qualquer fato biográfico sobre ela é “elevado” ao nível de produção intelectual; enquanto o trabalho de Trin Thi, que coloca seu corpo enquanto imagem pública, é condição para ter seu nome colocado num nível abaixo.

Dois anos depois, Gaspar Noé realiza aquele será o maior marco de sua carreira: Irreversível (Irréversible, 2002). Com a direção de fotografia de Benoît Debie o filme é, formalmente, impressionantemente vanguardista. Constituído de aparentes planos-sequências (realizados pela maestria do próprio diretor em montar os filmes), ele narra de trás-pra-frente uma história de estupro e vingança. Fundamentalmente, uma tragédia – no sentido clássico do termo. Ao contar a história a partir de seu desfecho, o realizador expressa um dos elementos psicológicos-existenciais mais fundamentais da vida: a angústia da inevitabilidade. O crítico Pablo Villaçã na época de lançamento do filme alegou: “Quando o filme chegou ao fim, confesso que chorei – não pelo que havia acontecido, mas sim em função do que ainda iria acontecer.”. Todavia, o que conferiu notabilidade à película foi, especificamente, a cena de estupro. A câmera que até então permanecia plenamente inquieta, com ângulos tortos e movimentos bruscos, se estabiliza; vemos a personagem de Monica Bellucci no nível em que se encontra, no chão; ela olha para frente no rumo da câmera e o horror nos é exposto. A cena dura uns 10min, não sei ao certo. Irreversível gerou polêmica, pessoas saíram da sala durante sua estreia em Cannes; mas não foi censurado. Não se trata de solidariedade. O cinema é uma arte global (diferentemente da literatura, onde os processos editoriais de tradução são lentos), de modo que, mais do que diz respeito à indústria francesa e europeia, Baise Moi abriu portas para abordagens extremas no cinema. Como nas palavras da própria Despentes: “O que de fato determina a história do pornô, o que a inventa e a define, é a censura” (DESPENTES, 2016, pg. 79), e isto vale, mesmo que de forma absolutamente diferente, para o cinema em geral.

A questão de que Baise Moi não tem nenhum virtuosismo formal, e que por isso não chamou a atenção dos críticos, se tornando assim um filme B, é falsa. Não por sua trilha sonora e pelo seu discurso, Baise Moi é um filme punk ou no-wave por sua direção; o sexo e a violência são, como numa música de Lydia Lunch, gritados sem ressalva. Mas os críticos só se interessam por cinema assim se for acompanhado de nomes como Larry Clarke ou Harmony Korine.

Após duas décadas, o cinema extremo de autoria feminina passou a ser abraçado. Entre o lançamento de Baise Moi e Irreversível houve o belíssimo Trouble Every Day (Desejo e Obsessão, 2001) de Claire Denis, diretora já veterana. Até que chegamos a uma espécie de releitura gore do Justine de Marquês de Sade pelas mãos da estreiante Julia Ducournau, o Grave (2016). Em seu segundo longa, Titane (2021), Ducournau foi consagrada com o Palma de Ouro, prêmio máximo do Festival de Cannes. Os gestos de Ducournau são, em vários sentidos, análogos aos de Despentes e Trin Thi: a violência gratuita exercida por mulheres, o sexo desinteressado, o falocentrismo ironizado. Faltou apenas a pornografia explícita, uma penetração, uma língua lambendo um órgão genital. Um dos temas densamentes abordados em Titane o colocou na categoria Queer Palm no festival: [INICIO DE SPOILER] a homossexualidade e a fluidez de gênero. Fugindo da polícia, a bela personagem de Agathe Rousselle transfigura seu rosto, improvisa um binder com faixas a fim de ocultar seus seios, bem como oculta sua gravidez. Ela se torna um homem [FIM DE SPOILER].

O novo extremismo francês se constitui de estados mínimos que são máximos. Diferentemente da obra de cineastas já citados como Lars von Trier, a densidade não se dá por complexidades psicológicas das personagens, coleções de referências às artes clássicas ou a grandes reflexões. Se Enter The Void é um filme edipiano num sentido psicológico, o é anedoticamente; se Grave se referencia a Marquês de Sade, é para fazer, em muitos sentidos, outra coisa. Apropriando-nos da fórmula de Kuniichi Uno presente no ensaio As Palavras e Nijinsky, o novo extremismo francês se constitui de “um grande recipiente [que] está contido num recipiente menor que, por sua vez, aprisiona em si inúmeros recipientes maiores e menores” (KUNIICHI, UNO, 2012, pg. 20). O que nomeamos de “estado mínimo” são as condições transcendentais ou critérios imanentes da vida. A crueza que caracteriza os filmes aqui abordados são a expressão destas condições ou critérios; e heis que o “estado máximo”, já a habitando, se desmembra de tal condição mínima enquanto sensação, sendo potência de nos afetar enquanto brutalidade do mundo - independentemente se cognoscível ou não. Deleuze e Guattari definem afecto enquanto "não são mais sentimentos e afecções, transbordam a força daqueles que são atravessados por eles" (DELEUZE, GUATTARI, 2010, pg. 193-194). Este maximalismo francês da imagem nos joga - e com as necessárias sutilezas! - ao mínimo cru do mundo. Por isso é frequentemente teratológico (Trouble Every Day, Grave) ou se volta ao inumano e ao queer (Titane) ou mesmo ao espiritualismo (Enter The Void). Mesmo quando aborda as questões mais “humanas”, é para desumanizar. O humano é necessariamente relativo a uma determinada moral, a uma civilidade; nada tem a ver com a espécie. Por isso o novo extremimo francês tem gestos tão semelhantes ao do velho extremismo francês, o de Sade, Baudelaire, Rimbaud. O horror de Baise Moi e de Irreversível se fazem ao confrontarem e, paradoxalmente, concordarem com as percepções morais dogmáticas: há justiça por meio da vingança? e se a vingança for global, impessoal? A violência e o gozo são as únicas respostas.


BIBLIOGRAFIA:

DELEUZE, Gilles, GUATTARI, Félix. O que é a Filosofia?; Tradução de Bento Prado Jr. E Alberto Alonso Muñoz – São Paulo, Editora 34, 2010.

DESPENTES, Virginie. Teoria King Kong, tradução de Marcia Bechara – São Paulo, n-1 edições, 2016.

KUNIICHI, Uno. A gênese de um corpo desconhecido, tradução de Christine Greiner – São Paulo, n-1 edições, 2012.

PRECIADO, Paul B. Testo Junkie: Sexo, Drogas e Biopolítica na Era Farmacopornográfica; tradução de Maria Paula Gurgel Ribeiro e Veronica Daminelli Fernandes. – São Paulo, n-1 edições, 2018.

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