O longa-metragem Homem Onça (2021) abre discussão para uma série de interpretações do Brasil das últimas quatro décadas. A narrativa busca ilustrar o processo de privatização, que atingiu parte das empresas estatais brasileiras, intensificado na segunda metade dos anos de 1990. É a partir de um contexto neoliberal e de reestruturação produtiva da empresa que o personagem precisa enfrentar as reformas e adaptar-se a essa lógica.
O drama narra a história de Pedro, um gerente de projetos ambientais da companhia estatal fictícia Gás do Brasil. Com a reestruturação dela e, posteriormente, com a privatização, em 1997, o filme segue com duas linhas narrativas para acompanhar a vida do protagonista. Em um primeiro momento, ele vive no Rio de Janeiro com esposa e filha e, anos depois, volta para Barbosa — sua cidade natal do interior carioca. Conforme acontecem transformações na vida profissional de Pedro, por exemplo, a demissão de pessoas da sua equipe de trabalho e a antecipação da sua aposentadoria, são observadas mudanças na vida social e familiar dele.
Entre os aspectos estéticos, o diretor faz o uso de metáforas para desenvolver uma fábula. A presença da figura da onça e a relação dela com a doença de pele, que o personagem vai desenvolvendo ao longo do filme, são elementos fundamentais para construir uma interpretação de identidade e pertencimento.
Nesse sentido, acompanhar a história não apenas do protagonista, mas também dos outros personagens, facilita visualizar a desestruturação provocada pelas privatizações nas formas de ser e agir dos empregados. Trata-se aqui de desdobramentos que essa reestruturação produtiva orientada por uma gestão neoliberal destrói e precariza a vida dos trabalhadores brasileiros.
Considerações sobre o Neoliberalismo no Brasil
Nas últimas décadas, o Brasil viveu e continua enfrentando um quadro sociopolítico e econômico desregulado e traumático. Após 21 anos de ditadura militar, de repressões físicas e ideológicas, a redemocratização apresentou mudanças significativas no modelo econômico do país. Até a chegada de Fernando Henrique Cardoso e sua sucessão de dois governos, as décadas de 1980 e 1990 foram marcadas pelo PIB fraco e inflação alta (ANTUNES, 2004).
Uma série de planos econômicos frustrados buscaram o controle da inflação durante esses anos, com destaque para o mandato de Fernando Collor (1990-1992). Castro (2011) contextualiza essa sequência:
As reformas propostas por Collor, de fato, introduziram uma ruptura com o modelo brasileiro de crescimento com elevada participação do Estado e proteção tarifária. Embora os primeiros passos tenham sido dados na gestão Collor, o processo só se aprofundou no governo seguinte (1º Governo Fernando Henrique Cardoso — 1995-98). A política industrial também ficou abaixo dos objetivos traçados, sempre subordinada à questão prioritária do combate à inflação. Já os planos econômicos Collor I e II não apenas fracassaram em eliminar a inflação, como resultaram em recessão e perda de credibilidade das instituições de poupança (CASTRO, 2011, p. 132).
É por meio dessa sucessão de mandatos que a política neoliberal é implementada, de forma que reordena a posição e diminui a intervenção do Estado na economia brasileira. Dentre as práticas neoliberais firmadas pelo governo FHC, as privatizações das empresas estatais exemplificam a gradativa precarização da vida dos trabalhadores. Identifica-se a intensificação da crise de constitucionalidade estatal e seus efeitos de inviabilizar a preservação dos direitos sociais da população. As justificativas para submeter o Estado brasileiro ao capital financeiro internacional foram construídas por falsas promessas de modernização do sistema socioeconômico do país. Sobretudo, eram ressaltadas: a concorrência do setor de serviços e a redução dos preços dos produtos favorecendo os consumidores (ANTUNES, 2004).
Essa estratégia de desestatização estimulada pelo perverso discurso neoliberal é nitidamente um dos elementos que constitui o enredo do filme. Observa-se, por exemplo, que a premiação do projeto de sustentabilidade de Pedro, na Suécia, soma-se ao reforço da ideia de que "o Brasil está se modernizando”. Também, fica evidente a influência e o espelhamento desses elementos estrangeiros na reorganização da própria empresa e na mudança de conduta dos empregados.
A narrativa possibilita centralizar a discussão nessa crítica, a qual expõe a reestruturação produtiva do capital e de seu aparato ideológico e político de dominação. Apesar da realidade retratada no filme ser da classe média brasileira da época, esse recorte de classe não limita generalizar os efeitos da agenda neoliberal para toda a sociedade civil.
Reestruturação Produtiva e Transformações nas Relações de Trabalho
À medida que ocorre o processo de privatização da Gás do Brasil — até ser renomeada para "GasBrax" —, os empregados são confrontados com mudanças na gestão interna da empresa. Isto é, os personagens são atravessados por rearranjos de cargos e de equipes. Esta é a lógica da reorganização: por meio de demissões em massa, aumentam-se a produtividade e os lucros da empresa. O filme deixa isso bem evidente ao retratar as listas com os nomes dos trabalhadores em curso de desligamento.
Aliada a essa redução no quadro de funcionários, outros elementos ilustram a tensão vivida no ambiente de trabalho modificado pela nova gestão neoliberal. Um deles é a desvalorização dos anos de serviço prestados por esse empregado à empresa. A frustração de Pedro é devido à antecipação da aposentadoria, porém, para os outros colegas de equipe resta o contexto de mercado de trabalho cada vez mais competitivo.
Ferrari (2005) verifica a relação entre mudanças nas condições de trabalho e a resposta dos empregados diante da privatização da empresa. O estudo volta-se para a análise de uma estatal do setor elétrico e conclui que as formas dos trabalhadores se relacionarem entre si associadas às suas obrigações laborais demonstram um cenário adoecedor. O que antes era promessa de felicidade por meio das amizades e de construções de laços estáveis, converte-se, principalmente, em competitividade e em um processo mais intenso de individualização. No início do filme, o momento do futebol ambienta o coleguismo, em face das consequentes demissões, percebe-se o desgaste dessas relações e o cinismo entre os personagens. Essa sequência da narrativa consegue claramente evidenciar como o neoliberalismo destrói a construção de vínculos morais e éticos.
Apesar de diferentes experiências pessoais e configurações dos modos de ser particulares, as consequências das práticas neoliberais de gestão são comuns a todos os trabalhadores. Existe uma relação causal entre as questões socioeconômicas voltadas para a organização do trabalho e os modos de ser, refletir e viver dos indivíduos. Essa associação denuncia a causa da sensação crescente de angústia e impotência no modelo neoliberal de produção da vida (SAFATLE et al., 2021).
(Re)Construções de Identidades
Um dos aspectos mais provocativos do filme é a tentativa de compreender a posição que os personagens assumem nas relações. Quer dizer, no trabalho, na família, nas amizades, seja por camaradagem, seja por conveniência. Acompanhar a configuração e os dramas dessa classe média urbana brasileira facilita traçar a relevância da ocupação laboral na constituição dessas identidades.
Fica claro que a profissão e o cargo de Pedro, na empresa, são fatores que determinam suas escolhas e seus hábitos. À medida que vão surgindo mudanças na configuração de trabalho do personagem, através de demissões, e do próprio ambiente físico da empresa, existem modificações físicas. Aparecem manchas na pele dele, podendo simbolizar questionamentos de um modo de vida estável que ele procurava manter. Para além de ser uma possível doença — vitiligo —, a identidade corporal distinta transparece a instabilidade nessa forma de sentir e viver.
O personagem, quando decide se mudar para o interior, não procura lutar contra o padrão de vida neoliberal carregado das marcas da globalização. O passado do personagem é um direcionamento para o futuro e, significativamente, as experiências anteriores não se perdem. Por isso, a figura da onça ganha peso, pois, ela deixa de ser apenas uma memória forte de sua infância e passa a ser um símbolo de presença. As sensações que Pedro experiencia longe do contexto urbano traduzem o que comumente é a busca por liberdade. João Cabral expressa bem essa impressão:
Ao redor da vida do homem
há certas caixas de vidro,
dentro das quais, como em jaula,
se ouve palpitar um bicho.
Se são jaulas não é certo;
mais perto estão das gaiolas
ao menos, pelo tamanho
e quadradiço de forma.
Umas vezes, tais gaiolas
vão penduradas nos muros;
outras vezes, mais privadas,
vão num bolso, num dos pulsos.
Mas onde esteja: a gaiola
será de pássaro ou pássara:
é alada a palpitação,
a saltação que ela guarda;
e de pássaro cantor,
não pássaro de plumagem:
pois delas se emite um canto
de uma tal continuidade.
Ainda neste cenário de desvalorização do trabalho, na lógica neoliberal das privatizações, a narrativa enriquece a discussão ao apresentar outros personagens. Por exemplo, Sônia representa perfeitamente o trabalhador atual que busca o empreendedorismo como a solução para questões trabalhistas e de ordem pessoal. Dantas, o qual se suicida no desfecho do drama, provavelmente, por motivos de trabalho, é outro personagem que acredita na empreitada do trabalhador autônomo.
É certo que existe um problema central nessas novas formas de relação de trabalho que o neoliberalismo reproduz. Por meio de uma análise geral do filme e dos dramas dos personagens, entende-se que os impactos estruturais do mundo do trabalho são questões da coletividade. Isto é, o desemprego, a desvalorização salarial e outras medidas, sejam elas governamentais, sejam de influência do capital privado, são de interesse e de vivência coletiva.
Essa série de privatizações, como ocorreu, em novembro de 2021, com a refinaria Landulpho Alves (Rlam), na Bahia, e o desmonte do que resta das estatais brasileiras são indicadores preocupantes. Visto as consequências objetivas e subjetivas para a população brasileira, essa discussão é de interesse público, não pertinente apenas aos trabalhadores dessas empresas, como apresenta o filme.
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Referências
ANTUNES, Ricardo. A desertificação neoliberal no Brasil (Collor, FHC e Lula). 2 ed. Campinas: Autores Associados, 2005.
CASTRO, L. B. de. Privatização, abertura e desindexação: a primeira metade dos anos 90: 1990-1994. In: GIAMBIAGI, Fabio et al. (Org.). Economia Brasileira Contemporânea. 2. ed. Rio de Janeiro: Elsevier Editora, 2011. cap. 6, p. 131-164.
FERRARI, A. L. S. Neoliberarismo, privatização de gestão e subjetividade: um estudo sobre o cotidiano dos trabalhadores da Escelsa. 111 f. 2005. Dissertação (Mestrado em Administração) – Centro de Ciências Econômicas e Jurídicas, Universidade Federal do Espírito Santo, Vitória, 2005.
HOMEM ONÇA. Direção: Vinicius Reis. Brasil, 2021. 1h30min.
LUNA, Denise. Gasolina em refinaria privatizada na Bahia já é 27,4% mais cara do que a vendida pela Petrobrás. Estadão, 09 mar. 2022. Disponível em: https://economia.estadao.com.br/noticias/geral,gasolina-diesel-refinaria-bahia-preco-petrobras,70004002534. Acesso em: 15 abr. 2022.
MELO NETO, J. C. de. Antologia Poética. Rio de Janeiro: José Olympio Editora, 1979. p. 68.
SAFATLE, V. et al. O sujeito e a ordem do mercado: gênese teórica do neoliberalismo. In: SAFATLE, V.; SILVA JUNIOR, N.; DUNKER, C. (Orgs.). Neoliberalismo como gestão do sofrimento psíquico. Belo Horizonte: Autêntica, 2021. p. 47-75.
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