Quase seis décadas depois do lançamento do filme São Paulo S.A. a tarefa de entender “o motor que impulsiona o Brasil”, como diz Arturo no filme, fica cada vez mais difícil. E não parece ser essa a proposta do autor e diretor Luiz Sérgio Person, já que a motivação para a existência do longa não foca em apresentar a cidade, mostrar como as pessoas se comportam ou falar da história das ruas e dos prédios. Caso fosse, talvez seria mais interessante terem investido no formato de documentário. Já que aqui nossa missão é fazer uma análise da obra, seria prudente entender do que ela se trata, para onde ela nos leva, ou seja, destino, finalidade. Então vamos lá.
O enredo é posto de uma maneira estranha, ou melhor, não convencional. É fácil de se perder com as diversas aventuras de Carlos em tempos diferentes, com personagens que ainda não conhecemos bem ou não foram apresentados, parecendo que são esquetes sucessivas de romances, brigas, devaneios, prazeres e sofrimentos. Mas depois conseguimos entender melhor que a história é contada em três atos, onde a maneira com que a filmagem é feita e disposta muda conforme o estado de Carlos, nosso herói. Esta estética do enredo fica bem exposta quando percebemos o papel das mulheres em cada ato. A primeira, Ana, aparece bem no começo, com uma aura de jovialidade, e cenas que se aproximam muito de uma comédia bem debochada. Mas que ao longo da narrativa vai tomando forma cada vez mais trágica, é quando Hilda se torna o centro das atenções do nosso herói. Independente, decidida, educada, enérgica e por fim profundamente melancólica, é como se a personagem de Hilda achasse que a vida era uma corrida e chegando nos finalmentes que se parava para pensar no que se viveu. E a última mulher de Carlos, Luciana, a que ele abandona já nas primeiras cenas do filme, tem um forte teor de tragicomédia, nos arrancam risadas e nos tencionam pelo exagero dramático de cenas absurdas, como as respostas mais ríspidas em momentos inesperados, brigas por motivações sem sentido, casar-se com quem queria que a polícia prendesse e assim por diante. São cenas de aflição e alívio cômico, vergonha alheia e esperança de salvação. Três atos se formaram então: Comédia, tragédia e tragicomédia.
Deu para perceber que nosso herói não é tão herói, que o príncipe pode largar a princesa e abandonar os ensinamentos dos seus confiáveis tutores. Digamos que não é uma jornada como as de Joseph Campbell ou Mircea Eliade. Mas por que isso? Qual é o destino ou finalidade da obra? E por que Carlos é o protagonista? Seria ele um vilão? Existem muitas técnicas que os autores utilizam para escrever histórias, e uma das principais têm preocupações, principalmente no começo da idealização, com a problemática. Ou seja, o assunto que movimenta os personagens e proporciona um desenrolar da história. Em Chapeuzinho Vermelho são as intenções do lobo, em Ensaio sobre a cegueira é a pandemia e em Dom Casmurro é a esperteza de Capitu e a desconfiança de Bentinho. Elementos que se retirados da obra interrompem todo o movimento da narrativa, já que seria só uma menina visitando a vovó, um homem que fica cego subitamente dentro do carro ou um casamento tradicional bem arranjado. Em São Paulo S.A. a problemática é a busca e a fuga do problema, sendo assim vemos uma procura incessante por complicações que motivam o herói, e rejeições de continuar essas aventuras juntamente com a angústia de ter escolhido abandonar.
A finalidade parece ser baseada neste ciclo vicioso: ambição, fuga dos ideais, angústia, novas ambições e assim continua. Uma espécie de frenesi, de nunca chegar ao destino e ao mesmo tempo não querer que chegue, pois na verdade queria outro. Mas por baixo de todo esse movimento, parece existir uma causa ainda mais profunda, o anonimato.
É verdade que o anonimato também é presente na jornada do herói tradicional, mas aqui ocorre de uma maneira singular, já que não é uma jornada tradicional. Carlos é um protagonista que não tem história, não apresenta familiares, não é mostrada sua casa, nem seus amigos, nem elementos da infância e nem ideais éticos que dão norte aos seus propósitos. Um personagem ainda mais individualizado que os heróis de bang bang. Essa característica o deixa propício para viver histórias maravilhosas, assim como viveu Tintim e seu cachorro Milu, Rambo, James Bond ou outros tantos que poderíamos dar exemplo. Esta é uma visão positiva do anonimato: “Ninguém me conhece, não tenho história nem pendências, posso fazer mil coisas, pronto para a maior aventura que encontrar.” Só que não é só soluções que o anonimato traz, pois além de alimentar a angústia a partir do momento que se toma algumas responsabilidades e se encontra em um cotidiano, a própria ideia de não ser um protagonista, mas só mais um no meio da multidão machuca o ego de pessoas como o personagem de Carlos, que se escondem na e batalham contra a própria mediocridade.
Person certamente não pensou no protagonista como alguém pelo qual o público iria querer torcer ou mesmo entender suas motivações. O que nos cativa em Carlos e faz com que fiquemos interessados na sua jornada é a proximidade com nosso próprio cotidiano. Sem cenas belíssimas, sem reviravoltas mirabolantes de novelas mexicanas, sem algo místico que traz uma nova perspectiva para a história nem nada do tipo. As únicas coisas que orbitam a narrativa são as questões políticas e de classe. Com Carlos mentindo e esquematizando para que Arturo vendesse as peças para a montadora, o descuido da segurança dos funcionários na fábrica, o interesse do Estado em arrecadar impostos, o desinteresse dos patrões em registar os funcionários, a maneira com que as mulheres são vistas e tratadas, a carreata de dever cívico e entre outros assuntos que compõem o filme, mas não chegam a ser assunto. Porém são elementos que formam esse retrato de uma cidade de cotidiano e frenesi, de grandes sonhos e decepções. Assim como diz Carlos de Arturo, seu patrão, sócio, tutor, amigo e comparsa “As grandes e desonestas ambições” que trazem um ar de falsas relações para ter ganhos e sustentar seus objetivos, ou melhor, desejos com falsas relações.
Os papéis são bem definidos: Carlos, o aventureiro medíocre atordoado pelas próprias escolhas; Arturo, professor corrupto, egocêntrico e confundido por Carlos ao como um homem deve ser; Ana, a jovem, esperta, bonita e hedonista; Hilda, a intelectual, independente e melancólica; Luciana a mulher que tem preocupações objetivas, que idealiza uma vida tradicional e próspera depois de consertar seu marido que anda estressado por conta do trabalho, mas no fundo sabe que não é isso que o angustia. É uma espécie de círculo social, uma sociedade, mas onde nem todos conhecem todos, e muito menos as ideias que passam em suas cabeças, pois estão em anonimato. Assim como Luciana quando procura Arturo para falar sobre negócios, escondida de Carlos, onde o próprio Carlos também não conta para a esposa sobre a contratação e as supostas confraternizações de negócio com Ana que retorna como um fantasma da juventude.
Juridicamente, sociedade anônima é um termo bem técnico. Mas dentro da arte, e em especial deste filme, podemos transcender estes aspectos formais buscando novas formas de compreender esta questão do anonimato. Visto que nem sempre se trata de uma empresa ou um capital, mas de círculos sociais que são personificados, porém não deixam de lado a impessoalidade e o desconhecimento sobre os interesses pessoais dessas relações anônimas. A impotência e mediocridade do nosso herói também pode ter raízes nessas instabilidades, já que aparentemente não consegue ter mais de uma esfera de convívio, precisando quebrar uma para continuar outra. É só mais um problema do herói individualizado.
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