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Foto do escritorPET Paideia

Histórias que só existem quando são lembradas

De 2011, o filme Histórias que só existem quando lembradas (doravante Histórias) marca a estreia de Julia Murat como diretora de filmes ficcionais. Não à toa, o filme angariou 36 prêmios e conta com mais de 80 participações em Festivais nacionais e internacionais de cinema: Histórias trata de temas existencialmente densos com exímia sensibilidade, sutileza e beleza: solidão, abandono, tédio, velhice e sua relação com a juventude, morte, silêncio, tradição, temporalidade e repetição são algumas das questões problematizadas em/por Histórias. Conquanto silencioso e vagaroso — características sem as quais não seria possível uma imersão tão profunda no cenário — o filme é conceitualmente expressivo, abarcando, ao longo de seus 96 minutos, temas de grande interesse para filósofos, psicólogos e cientistas sociais em geral.

Histórias é ambientado em uma localidade rural, de nome Jotuomba. Jotuomba é uma daquelas localidades que estão em descompasso com a contemporaneidade, ou, como se costuma dizer, ‘parou no tempo’. A diretora nos faz perceber essa condição não só pela antiguidade e mau estado das construções, mas também pela completa ausência de tecnologia e pela resistência de seus moradores a quaisquer mudanças em suas relações sociais e constituição psíquica. A fictícia Jotuomba está inserida no interior do Rio de Janeiro, e mais especificamente no Vale do Paraíba, região outrora marcada pela riqueza sustentada pelas grandes fazendas café. Jotuomba representa a parte falida do Vale do Paraíba, não apenas do ponto de vista financeiro, mas também social: não fosse pela presença de uns poucos moradores, a localidade seria uma autêntica cidade-fantasma.

O filme tem início na casa da Madalena (personagem de Sônia Guedes). Ainda é madrugada, e a lamparina sugere a inexistência da energia elétrica. Madalena acorda antes do sol surgir para cumprir o seu ofício diário, a saber: fazer pães e depois levá-los para o que parece ser o único ponto de comércio existente na localização, a mercearia do Antonio (personagem de Luis Serra). Entre a casa de Madalena e a mercearia do Antonio, há uma estrada de ferro desativada, situação comprovada pelo mato que abunda na ferrovia, por um lado, e que corrobora, por outro, a constatação de que Jotuomba é uma cidade-fantasma. As cenas da preparação do pão e do percurso através da ferrovia se repetem ao longo de todo o filme, dando-nos a entender que essas situações se repetem de maneira automática, e sem férias, ao longo de toda a vida de Madalena e Antonio. A despeito da característica bucólica do cenário, em que abundam montanhas e tons de verde, as cenas iniciais do filme são eficazes em demonstrar o poder psiquicamente devastador do tédio, da solidão e do abandono.

Estamos acostumados a ouvir educadores, psicólogos e filósofos afirmarem diariamente que as tecnologias e as redes sociais promovem solidão e déficits nas relações sociais. Podemos chegar a defender, equivoca- e apressadamente, que a tecnologia é a grande promotora da solidão humana. Mais uma vez, a sétima arte nos brinda com seu poder pedagógico: as cenas iniciais do filme nos conduzem a uma perspectiva mais ampla, quando nos fazem notar, à sua maneira, que não é a tecnologia que promove a solidão; antes, a solidão é constitutivamente humana. Duas são as formas pelas quais o filme expressa, desde o seu início, a ubiquidade da solidão: por meio das madrugadas silenciosas e solitárias em que Madalena se levanta para fazer os pães e que Carlos (personagem de Antônio dos Santos) bebe cachaça, e por meio dos espaços amplos e vazios exibidos pela câmera, seja quando centra na ferrovia desativada, seja quando centra na amplitude da localidade ou mesmo na ampla e esvaziada mercearia do Antonio.

E eis que é preparado o clímax de Histórias: certo dia, e de maneira particularmente misteriosamente, chega, a Jotuomba, e pela ‘desativada’ estrada de ferro, uma jovem fotógrafa, chamada Rita (Lisa E. Favero). O conflito, característica fundamental do drama, está estabelecido: entra em cena uma jovem tipicamente urbana, e cujo comportamento exibe curiosidade, independência e irreverência, características ausentes em Jotuomba. Seus traços psicológicos e comportamentais são notados com facilidade, seja por conta de seu moderno corte de cabelo, seja por seu jeito de se locomover, por suas roupas e por suas indumentárias tecnológicas, em especial as máquinas de fotografia e o aparelho portátil de ouvir música.

Não há jovens em Jotuomba. A presença de Rita causa espanto; ao mesmo tempo e, na mesma medida, reprovação. Rita é a personificação de valores contrários aos acomodados em Jotuomba: ela traz consigo a novidade, a mudança, a ruptura, a juventude e a vivacidade. Por sua inadequação ao status quo do local, Rita é a perfeita representação da ‘estrangeiridade’. O sentimento de não-pertencimento é recíproco, o que quer dizer, é sentido por Rita e pelos locais. No que diz respeito ao reconhecimento de si como estrangeira, temos, em uma das cenas finais do filme, Rita dizendo a Madalena: “eu não posso continuar fingindo que sou daqui”. No que diz respeito ao reconhecimento de Rita como estrangeira pelos moradores de Jotuomba, temos um momento paradigmático, em que Antonio pergunta a Madalena: “quem é essa moça?”. Madalena não apresenta uma resposta consistente. Assim como ocorre com Antonio e Madalena, não sabemos, os espectadores, e de certa forma habitantes de Jotuomba, quem é Rita. O que sabemos é que, desde o início, Rita suscita, nos habitantes da localidade, um inexpresso sentimento de ambiguidade engendrado pelo encontro entre, de um lado, a velhice, a tradição e o medo da morte com, de outro, a juventude, a mudança e a vivacidade. Rita causa repulsa, mas a vida plena que porta seduz de maneira incontornável os quase-fantasmas habitantes de Jotuomba.

A despeito da posição de centralidade que Rita ocupa em Histórias, não entendo que a personagem de Lisa Favero seja a protagonista do filme. Concebo, antes, que os protagonistas são Madalena e Antonio. As grandes questões filosóficas são suscitadas pelo velho casal de amigos, ainda que sob a inspiração e presença de Rita. Com efeito, Rita é o que lhes permite explicitar suas próprias, e rudimentares, perspectivas sobre a relação entre solidão, abandono, juventude, velhice e morte. Em um paradigmático diálogo, no interior de um dos raros momentos em que não estão implicando um com o outro, Madalena conta para Antonio que seu falecido marido lhe dizia que todas as vezes em que olhava para ela, era a Madalena de 20 anos quem ele ‘via’. Na esteira dessa confissão marcada por um misto de saudade e amargura, Antonio então se recorda daquela que parece ser sua única ou primeira namorada, que faleceu quando ambos possuíam apenas 18 anos. Não sabemos se pela distância dos anos ou se por um artificio psicológico de Antonio, a rememoração parece mais ter gerado benefícios que malefícios para sua vida: “Graças a Deus”, ele afirma, “não a vi ficar velha”; afinal, quando se lembra desse amor, ele também tem 18 anos, ou seja, não é velho. A memória de sua namorada é a única e frágil fonte de qualquer vivacidade que Antonio possa experienciar. E o dono da mercearia parece interromper a conversa em prol do silêncio: “Quando a gente tem uma boa lembrança da juventude, não devemos ficar visitando depois de velho”. Madalena então intercepta Antonio, e pergunta: “e o que sobra?”. Antonio responde laconicamente: “Nós”. Antonio quer o silêncio. Diante do incômodo gerado pelo diálogo, mas sobretudo porque Madalena não quer ceder às vontades de Antonio, ela mais uma vez pede a Antonio: “incomoda ficar um pouco em silêncio?”. O silêncio, um dos protagonistas de Histórias, entra mais uma vez entra em cena. Passemos ao silêncio.

Com efeito, o filme lança mão de um magistral trabalho de câmera e fotografia, e é graças à eficiência desses recursos que Histórias dispensa os diálogos vazios e, no mesmo sentido, nos convida e nos instiga a contemplar expressões faciais, posturas corporais e as mensagens que certas formas de silêncio conseguem expressar. Não à toa, o filme repete mais de uma vez os momentos em que Madalena parece implorar a Antonio mais silêncio: “você se incomoda de ficar em silêncio?”. A pergunta de Madalena se estende a nós. Como espectador do filme, senti-me permanentemente convidado a ficar em silêncio. Como nos ensinam os mestres das tradições contemplativas, ficar em silêncio não consiste em deixar de pensar, o que seria impossível. Antes, ficar em silêncio implica a prática de se desbastar e de ouvir os ruídos internos. É, em síntese, estar presente. Duas são as cenas em que, antes do almoço na igreja, o padre (personagem de Ricardo Merkin) ora com os moradores de Jotuomba. Na primeira cena, antes da aparição de Rita, a oração ocorre sem a presença de qualquer som. Na segunda cena, já com a presença de Rita, ouvimos burburinhos. Mas, diferentemente do que apregoam as tradições contemplativas, a diferença entre a primeira e a segunda não é a ausência e a presença da ‘presença’. O que ocorre é exatamente o contrário: a primeira cena tem a marca do automatismo; a segunda cena tem a marca da presença. Talvez esse seja o motivo pelo qual o Padre seja o único personagem que mantém a aparente repulsa por Rita até o fim do filme. Talvez seja ele, o Padre, o maior (e talvez o único) prejudicado por todas as mudanças que Rita traz consigo.

O Padre é aquele que, a partir de seu contato direto com Deus, proibiu o acesso ao cemitério. O Padre é aquele cujas homilias parecem inacessíveis aos fiéis. Conquanto sua presença no filme seja relativamente discreta, o Padre é aquele que detém o poder sobre as ovelhas e sobre a morte. Antonio acredita que os habitantes de Jotuomba se esqueceram de morrer. Na verdade, os habitantes de Jotuomba temem a morte, e é com base nesse temor que o Padre sustenta seu poderio, e, na mesma proporção, antagoniza com Rita. Diante do espanto causado pelo fato de Rita gostar de cachaça, o Padre, em tom de reprovação, adverte que, se a cachaça é vício de homem, a Rita, mulher, cabe os seguintes vícios: chorar, parir, costurar e rezar.

O desenrolar de Histórias parece resolver o conflito entre a antipatia do Padre e a simpatia de Rita, aumentando a participação e a popularidade da jovem na mesma medida em que diminui a presença do sacerdote, o arauto da velhice, da tradição e da morte. Diante da iminência da partida de Rita, Madalena, ciente de que sua partida seria o reaparecimento de todas as nefastas características de Jotuomba que foram derrotadas por Rita, lhe oferece o santo graal, a saber: a chave do cemitério. A placa “Proibida a entrada” e as plantas e flores que estão instaladas em frente à porta do cemitério são também transpassadas por Rita. Madalena, a portadora da chave e a responsável pelas plantas e flores, é transpassada por Rita, mas com sua permissão. Assim como Madalena se recusou a bater na porta de sua casa antes de entrar no quarto em que acomodou Rita, agora é ela quem autoriza Rita a desvendar os segredos seus e da localidade. É nessa esteira que ela se permite fotografar por Rita. O aumento da confiança que Rita conquista se expressa nas duas cenas em que Madalena se permite ser fotografada: em um primeiro momento, ela não apenas se permite ser fotografada, mas parece se envaidecer com esta possibilidade. Em um segundo momento, ela não apenas se permite ser fotografada, mas é fotografa nua. Não há mais barreiras entre Madalena e sua hóspede. Madalena, a dona da história, elege Rita como sua herdeira. Rita, afirma Madalena, não pode ir embora. Rita, como é sugerido por Antonio na cena final, é quem deve manter a tradição da recém-falecida Madalena: “minha filha, agora não há ninguém para fazer o pão!”. Madalena reinstaura o convívio da localidade com a morte, mas apenas porque agora há a Rita.

Dias antes de seu falecimento, Madalena confessa a Antonio seu medo da morte. Diante de mais essa confissão, Antonio responde: “é só não morrer. Você pode viver o tempo que quiser”. Antonio ainda acrescenta que não pensa em morrer por não ser infeliz o suficiente. Na noite de festa Junina, Antonio, ao ser indagado por Rita sobre o motivo pelo qual a igreja parou de registrar os mortos, responde: “aqui a gente se esquece de morrer”. Esse cenário também foi modificado por Rita, que trouxe de volta para Jotuomba a mudança, o que implica a morte. Rita nos ensina a apreciar a morte como elemento de celebração da vida. Seja quando ousava cantar e dançar na silenciosa Jotuomba, seja quando à noite se encontrava com Carlos para beber cachaça, seja quando despiu Madalena e Antonio, cada um à sua maneira, Rita nos ensina que a vida é presença na mesma medida em que é transitoriedade, movimento e mudança.


 




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